Ao que tudo indica, os primeiros cravos chegaram ao Brasil já em 1552, com a chegada de D. Pero Sardinha à Bahia, para organizar a primeira Sé. Diversos trechos de crônicas e missivas dos padres atestam a presença de cravos nos colégios da Companhia de Jesus no século XVI, como podemos observar nos seguintes trechos da carta de Fernão Cardim a El-Rei (Rodrigues Vale, 1978, p.17):

[...] em todas estas três aldeias há escolas de ler e escrever, onde os padres ensinam os meninos índios; a alguns mais hábeis ensinam também a contar, cantar e tanger; tudo tomam bem, e já há muitos que tangem frautas (sic), violas, cravo e oficiam missa em canto de órgão, coisas que os pais estimam muito [...].

O autor continua:

[...] em todo o tempo do batismo houve boa música e motetes, e de quando em quando se tocavam as frautas (sic); depois disse missa solene com diácono e subdiácono, oficiada em canto de órgão pelos índios, com suas frautas (sic), cravo e descante.

Outras referências ao instrumento podem ser encontradas em relatos do século XVIII. No primeiro decênio, em uma visita a uma escola de música de Salvador, Peregrino de Nuno Marques Pereira observa, em uma crônica, que: “Em um canto da sala [há] um organo, um cravo, e um monocórdio”. Já nos fins daquele mesmo século, no Rio de Janeiro, o viajante inglês Sir George Stauton conta que as senhoras cariocas “amando a música apaixonadamente, tocam em geral cravo ou viola” (Tinhorão, 1998, p. 124).

São ainda raros os nomes de artesãos ligados à construção de cravos no Brasil de antigamente. Entretanto, construtores de órgãos, como Agostinho Rodrigues Leite - em Olinda - e Manuel Inácio Valcacer - também fabricante de instrumentos em geral - poderiam estar associados à fabricação de cravos ou espinetas. Antônio José de Araújo, atuante no Rio de Janeiro, citado como “organeiro e afinador de cravos e piano”, e, em 1814 nomeado “mestre e afinador de cravos”, também estaria ligado à construção de cravos. A informação de que Mathias Bostem, construtor da espineta que atualmente se encontra no Museu Imperial de Petrópolis, era chamado em Lisboa de “mestre de cravos” da Real Câmara, e que desempenhava as funções de afinador, de cravista da orquestra e ainda de construtor, pode reforçar a hipótese anterior (Correa de Azevedo, 1956, Ayres de Andrade, 1967, Scherpereel, 1985).

José Maurício Nunes GarciaA utilização de um cravo pelo maior compositor carioca do fim do século XVIII, José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), é relatada por diversos autores: “ [...] tocava viola e cravo sem jamais ter aprendido [...](Araújo Porto Alegre, 1983, p. 23).  Ou então: “[...] fazia ingentes esforços para desenvolver na população o gosto pela música, já dando, por mínima retribuição, lições em casas particulares de violão, cravo e espinheta [...]”, como conta o Visconde de Taunay (1983, p. 12). O cravo esteve sempre presente nos salões ricos, como descreve Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1956, p. 18):

Não faltaram viajantes estrangeiros que em suas memórias mencionassem a graça e habilidade com que as jovens brasileiras dedilhavam harpas, violas ou cravos, cantando com inimitável expressão as modinhas [...]

Além dos relatos dos viajantes, algumas obras de literatura, mesmo em época bem tardia, tanto no Brasil quanto em Portugal, descrevem hábitos cotidianos que ilustram a utilização do cravo. Assim, conta Machado de Assis, no Capítulo XIII das Memórias Póstumas de Brás Cubas, que “[...] as moças falavam das modinhas que haviam de cantar ao cravo, e do minuete e do solo inglês [...]”. Já Eça de Queiroz escreve em seu conto Singularidades de uma Rapariga Loura (p. 20) que: “ [...] as Vilaças costumavam ir aos sábados à casa de um tabelião muito rico da rua dos Calafates; eram assembléias simples e pacatas, onde se cantavam motetes ao cravo”. Na página seguinte continua: “[...] depois, a preciosa D. Jerônima da Piedade e Sande, sentando com maneiras comovidas ao cravo, cantou com a sua voz roufenha a antiga ária de Sully”.

Não são poucas as referências sobre a utilização de cravos no Brasil, desde o século XVI, encontradas nos mais variados documentos e em obras de ficção. Mas só mais recentemente foram localizados os primeiros registros em documentos oficiais sobre a presença do instrumento, mais especificamente no Rio de Janeiro (Mayra Pereira, 2005). Esta pesquisa revela que o mais antigo documento referente à entrada de cravos no porto do Rio data de 1721. Deste ano em diante foram encontrados em jornais inúmeros anúncios de venda ou leilão de cravos ou espinetas, bem como registros de instrumentos em inventários ou em documentos alfandegários. Mais interessante é que ainda em 1829 um decreto régio fixa o preço de cravos para venda e que em 1830 cravos são anunciados para serem leiloados (Pereira, 2005). Os documentos levantados pela pesquisa demonstram que o instrumento sempre fez parte da vida musical carioca e até bem tarde.

Quanto aos pianos, verifica-se que passam a proliferar no Rio de Janeiro a partir das primeiras décadas do século XIX, ainda que nos últimos anos do século anterior já fossem conhecidos. Um inventário de 1798 é a mais antiga evidência documental sobre sua presença, tratando-se possivelmente de um exemplar construído na própria cidade do Rio de Janeiro (Pereira, 2005). Durante um longo período cravos e pianos coexistiram, e José Maurício Nunes Garcia pode ser citado como um exemplo de compositor e tecladista que conheceu e tocou os dois instrumentos, além do órgão. A partir do século XIX chegam à cidade diversos tipos de pianos (de mesa, de cauda e verticais), vindos de Portugal, Alemanha, Inglaterra e França. Os construtores mencionados nos documentos são Erard, Broadwood, Stodart e Clementi (Pereira, 2005).

Não há dúvidas quanto ao freqüente uso do cravo no Brasil nos séculos XVI, XVII, XVIII e nas primeiras décadas do XIX, mas a busca por um repertório de obras compostas especificamente para o instrumento poderá ainda chegar a resultados mais satisfatórios. Entretanto, ainda que não visassem unicamente o cravo, dois de nossos compositores podem ter algumas de suas obras incluídas neste repertório.

José Maurício Nunes Garcia, um dos maiores nomes da música colonial brasileira, compôs ao fim da vida o Método de Pianoforte, uma coleção de 30 pequenas peças para o teclado, que, ainda que não privilegiem diretamente o cravo, são também próprias para o instrumento, por razões tanto históricas quanto musicais. As Lições e Fantasias que compõem o Método, cujo objetivo era didático, são miniaturas de dificuldade progressiva, elaboradas para atender à educação musical de dois de seus filhos, ainda jovens na época. As peças contêm interessantes citações de obras do próprio José Maurício - como trechos do Réquiem de 1816 - e ainda de outros autores, como Haydn e Rossini.

Já o compositor pernambucano Luís Álvares Pinto, cuja obra mais considerada é seu Te Deum, escreveu em 1776 as Lições de Solfejos, pequenas peças contrapontísticas a duas vozes, que finalizam um volume de teoria musical. São obras que possivelmente serviam a jovens iniciantes do teclado (cravo, órgão).

Um outro caso interessante é o da Sonata nº 2 encontrada nos arquivos da Sociedade Musical Santa Cecília de Sabará, Minas Gerais, já coloquialmente denominada Sonata Sabará. De autor desconhecido, em três movimentos (Allegro, Adagio, Rondó) é por muitos considerada como obra brasileira. Contrariando o desejo de alguns musicólogos, mas apoiado nas reflexões que se seguem, acredito que o mais provável é que tenha sido uma cópia realizada na colônia de obra de autor português, algo comum, na época. Seu estilo composicional, caso seja uma obra brasileira, constituiria um exemplo raro e único.

Este foi precisamente o caso do manuscrito sobre sistemas de afinação de teclado encontrado em Salvador, Bahia, inicialmente divulgado como brasileiro, e supostamente de autoria desconhecida. Descobri tratar-se de uma cópia de um dos importantes tratados portugueses, o Compendio de musica theorica e pratica, da autoria do Frei Domingos de São José Varella, publicado no Porto em 1806. Caso semelhante ocorreu com a obra Compendio Musico ou Arte Abreviada, da autoria de Manoel de Moraes Pedroso, publicada no Porto em 1751, e copiada em Mariana, Minas Gerais, em 1790 por José de Torres Franco (Fagerlande, 2002).

Desde a segunda metade do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX compositores brasileiros utilizaram o baixo contínuo em diversas obras, e a presença do cravo também pode ser identificada para realizá-lo. Os tratados sobre o baixo contínuo possivelmente utilizados no Brasil eram em sua maioria obras portuguesas, em publicações originais, ou aqui copiadas, como vimos. As duas obras brasileiras que abordam o assunto já datam do século XIX, sendo que A Arte da Muzica, de autor anônimo, publicada no Rio de Janeiro em 1823, indica o cravo como instrumento adequado à realização do contínuo e este adequado para o acompanhamento de modinhas e minuetes.

Considerando que a história do cravo no Brasil abrange um período de alguns séculos, sabemos ainda muito pouco a seu respeito. Nos resta aguardar por pesquisas futuras, que possivelmente revelarão fatos, partituras, e quem sabe compositores.

Mas a história do cravo no Brasil não acaba no século XIX. A publicação O Cravo no Rio de Janeiro do século XX, da autoria de Marcelo Fagerlande, Mayra Pereira e Maria Aida Barroso (2020) revela nomes de compositores e intérpretes – brasileiros e estrangeiros – que aos poucos vão trazendo o instrumento novamente para a cena musical. Em 1900 o compositor Leopoldo Miguez adquire um cravo Pleyel em Paris, e no mesmo ano Carlos de Mesquita publica uma obra composta para o instrumento. Intérpretes como Elodie Lelong (1904), Alfredo Bevilacqua (1906), Anatol Viettinghoff-Scheel (1933), Lucila Machuca de Garcia (1936) e Gabriella Ballarin (1939) se apresentam no Rio, até a vinda de Violetta Kundert, que a partir de 1949 se estabelece na cidade, passando a se apresentar com regularidade ao cravo. Entretanto, com o surgimento de Roberto de Regina, a partir de 1959, a situação muda completamente, pois além de suas atividades como cravista e regente, o músico passa a construir cravos, o que possibilita que um número maior de pessoas tenha acesso ao instrumento. Após algumas décadas deste trabalho pioneiro, surgiram vários cravistas e construtores. Atualmente, o ensino do instrumento faz parte do currículo regular de certas escolas de música no país, nos níveis profissionalizante, de graduação e pós-graduação. Alguns compositores contemporâneos não ficaram alheios ao ressurgimento do cravo, e escreveram obras para o instrumento - solo, em música de câmara ou com orquestra - como Almeida Prado, Edino Krieger, Osvaldo Lacerda, Marisa Rezende, Ronaldo Miranda, Ernani Aguiar e Claudio Santoro.

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